O filho que vai embora, a idade cabalística, a insônia e o balanço

marcobrasil
3 min readSep 2, 2023

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Hoje, apesar da semana exaustiva que tive e de que pela primeira vez ia poder acordar um pouquinho mais tarde, abri os olhos às 4h30. Meu sono geralmente é muito bom, hoje não foi. É que hoje um filho vai embora.

Dicky Fox, o mentor de Jerry Maguire, dá seu último conselho

Por pouco tempo, só 5 meses, mas é o suficiente para roubar o sono. Acordei. Virei para um lado. Virei para o outro. Tomei água. Fui ao banheiro. Me cobri. Descobri. Tentei fechar os olhos mas os olhos do cérebro estavam arregalados e no R.E.M. ao mesmo tempo.

Reconheci que a razão é dupla. Não apenas o filho vai deixar um buraco na casa enquanto bate asas no seu intercâmbio no exterior, é também a véspera da idade redonda que se avizinha. Esta semana completo 50.

Aí lembrei que quando fiz 30 escrevi no meu blog como me sentia aos 30. Lembrei que quando fiz 40 escrevi como me sentia aos 40 (provavelmente no Facebook). Seria então correto honrar a tradição e escrever o que há de diferente aos 50.

Bem, tem a lombar estragada e o joelho estropiado, tem a testa cada vez mais extensa também, mas para além dos aspectos físicos, tem essa questão espiritual-sentimental difícil de colocar em palavras. Porque não foi apenas uma década que passou, foi esta década específica, que começou com os protestos de 2013, evoluiu para lava jato, a ascensão de ideologias que se pressupunha enterradas no esgoto da história, os anos Bolsonaro e a polarização alimentada por algoritmos malignos que praticamente feriu de morte as chances de diálogo e de progresso. Então os 50 anos eu atinjo numa situação de crise de esperança, de impotência ante o mundo, de revisão de balizas importantes na vida como fé, política e família. Não sei como vai ser minha relação com a igreja daqui pra frente (porque me parece óbvio que se ela for para um lado e Jesus Cristo for para o outro, eu tenho que escolher o lado de Jesus), tenho medo das consequências de não seguir a manada em tantas coisas e temo as escolhas que o mundo vai fazer daqui pra frente.

Família latu sensu, porque a família strictu sensu é meu forte. O núcleo que Deus me permitiu viver com minha esposa e meus filhos são o que tenho de mais precioso no mundo e se isso já não era suficientemente claro aos 30 e aos 40, aos 50 ficou escancarado.

Profissionalmente, os 40 me levaram para caminhos diferentes, que não rendem dinheiro mas rendem outro tipo de pagamento. Não reclamo, fico feliz que seja assim.

Portanto, abrir os olhos às 4h30 no dia em que o filho vai embora acabou evoluindo, pelas voltas loucas que nossa cabeça dá nessas ocasiões, em um pequeno, parcial, balanço de vida. Como foram estes 50 anos? A rigor, compus músicas que pouca gente ouviu, escrevi livros e textos que pouca gente leu, preguei sermões para poucas pessoas e um número ainda menor de pessoas realmente interessadas, ensinei o que aprendi da Bíblia a um punhado de gente e, pra parafrasear Machado, transmiti o legado de minha miséria a 4 pessoas incríveis, que, queira Deus, façam algo de bom com isso. Foi isso.

Ontem, enquanto arrumavam a mala, Tatiana e Davi assistiam um episódio de This is Us em que Kevin reassiste Jerry Maguire em sua despedida de solteiro. E tem aquele discurso final do mentor do Jerry. Ele diz algo como “pra ser honesto, na vida eu fracassei tanto quanto ganhei, mas eu amo minha esposa, eu amo minha vida e eu te desejo o meu tipo de sucesso”.

Então minha cabeça insone recuperou uma memória bastante antiga. Algo que escrevi em um diário, provavelmente ali por 1987 ou 1988. Num canto de página, eu escrevi um dia algo assim: “eu só queria ser uma canção. Que alegrasse alguém de verdade”.

Fechei o balanço. Acho que o que desejei na minha adolescência foi o que aconteceu, logo, eu tenho sucesso na vida. Meu filho adolescente vai voar hoje, experiência que eu não pude ter. Que ela faça desejos bons e que Deus seja com ele tão generoso como foi comigo.

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marcobrasil

Cristão, adventista, marido da Tatiana, pai de quatro, advogado, mestrando, são paulino e feliz.