A Bíblia, a novela mexicana, a Palestina e eu com isso tudo

marcobrasil
3 min readNov 6, 2023

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Na maior parte da minha vida, li a Bíblia como se fosse uma novela mexicana. Na novela mexicana típica, você não precisa pegar a trama desde o começo; basta assistir qualquer episódio, pode pegar no meio do episódio, bastam 20 ou 30 segundos e você sabe quem é mau e quem é bom. A leitura “novela mexicana” da Bíblia diz que Davi, Abraão, Salomão e Neemias são bons. Israel é bom. Os outros são maus e o máximo que se permite aos bons é alguns poucos deslizes.

Fonte: newarab.com

Curiosamente foi a boa literatura que me fez conseguir enxergar a Bíblia como tendo um autor mais sofisticado do que esse maniqueísmo simplista recomenda. Foram os bons livros, ficcionais ou teológicos, que me abriram os olhos para as perversidades de gente como Neemias e Salomão. Os bons livros que meus guias sempre disseram para eu manter longe de mim.

Essa literatura mais avançada me apresentou a um Deus ávido por abençoar todo mundo e que busca meios para tanto sem violentar a liberdade individual de quem renitentemente escolhe por pecado e morte. Ele só instala o povo que escolheu como instrumento para isso depois que esse povo passa 430 anos sob a bota (ou a alpargata) da opressão e o chicote da escravidão. Ele liberta esse povo e fala: “ vai lá e faz diferente”.

Mas então Israel se instala, se impõe, subjuga os demais povos da terra e faz tudo igual. Ao invés de tratar o estrangeiro e o pobre com dignidade, Salomão submete todo mundo a trabalhos forçados. Ao invés de distribuir equanimemente a riqueza, Salomão acumula, constrói baias para milhares de cavalos e constitui um harém gigantesco.

Se o povo oprime como oprimido foi e como os outros oprimem sempre que podem, bem, não admira que passe a adorar como os outros adoram também. O exílio é a consequência disso e Neemias vem e ataca o elemento adoração como se ele fosse um fim em si mesmo e então cria-se o verdadeiro cancro da religião judaica e cristã até hoje: o farisaísmo legalista.

Logo, consigo ler a Bíblia e ver que Salomão e Neemias — para ficar só nesses dois exemplos — tiveram atitudes louváveis, mas foram demasiadamente humanos e no frigir dos ovos talvez tenham sido mais vilões que heróis. Afinal, as atitudes dos personagens da Bíblia não implicam em aprovação divina, ou então seria o caso de Ele aprovar poligamia, escravidão, opressão, acúmulo de riqueza e legalismo, e está claro demais que tudo isso O ofende porque significa o avesso de Jesus Cristo.

E a História se repete de um modo curioso. Israel é submetido a uma nova opressão. Desta vez o chicote que o assola é nazista, é fascista, calçado em ideias racistas e nacionalistas. Vem, Israel, depois dessa experiência traumática, vou te instalar na Palestina. Para você fazer diferente. E em toda oportunidade que aparece, Israel faz igual.

A Bíblia, portanto, amigos, não é uma novela mexicana. É literatura muito mais sofisticada, porque Deus é amor e o amor não se dá bem com maniqueísmos. Logo, eu fui chamado para agir não igual Salomão, não igual Neemias ou Abraão ou Davi. Eu fui chamado para algo muito mais sofisticado que todos eles. Fui chamado para ser Jesus Cristo. Apoiar o opressor é fazer igual. Amar, perdoar, abraçar o diferente e incluir — é fazer diferente. Falta em Israel, falta na minha igreja, falta aqui.

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marcobrasil

Cristão, adventista, marido da Tatiana, pai de quatro, advogado, mestrando, são paulino e feliz.